sexta-feira, 28 de maio de 2021

Livros e Palavras

"Era uma vez um livro de histórias cheio de palavras como todos os livros. Estava guardado na prateleira de uma estante, num armário ao fundo do fundo de uma casa e há muito tempo que ninguém lhe pegava para o folhear e o ler. As palavras estavam para ali muito alinhadinhas mas fartas de estar fechadas nas páginas do livro, sem ninguém que as lesse e as dissesse em voz alta, e lhes permitisse espreguiçarem-se e darem uma voltinha para estender as pernas.
Não é de admirar que um dia, as letras que formavam a palavra "borboleta" tenham começado a tremelicar, a chocar umas com as outras e, de repente, a palavra borboleta tenha saído do livro a voar.
Atrás dela seguiu a palavra "foguetão" que não quis ficar para trás e, num instante, entrou em órbita.
Entusiasmada, a palavra "canguru" saltou de página em página até saltar também do livro para fora.
E muitas outras palavras seguiram este estranho exemplo.
A palavra "cavalo" lá se foi, naturalmente, a galope. A palavra "fervura" ferveu e desapareceu numa nuvem de vapor no ar.
A palavra "gelado" derreteu-se.
A palavra "sapato" disse que precisava de umas meias solas e pôs-se a andar.
Cada palavra lá foi andando da maneira que pôde. Mesmo palavras pesadas como "gordo", ou lentas como "caracol", com maior ou menor dificuldade, acabaram por escapar do livro.
E foi assim que, a pouco e pouco, as páginas foram ficando em branco e o livro vazio e sem histórias para contar.
No meio daquelas páginas todas, só tinha ficado a palavra "lápis" que se sentiu muito triste ao ver-se ali sozinha.
Por isso, pôs-se a inventar uma história e começou a escrevê-la cheia de palavras redondas, quadradas e bicudas, umas mais magrinhas, outras barrigudas. E escreveu palavras e palavras e palavras a rodo e, assim, acabou por encher de novo o livro todo."
José Fanha, A Noite em que a noite não chegou.

terça-feira, 23 de março de 2021

Se eu Fosse um Padre

 Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,

não falaria em Deus nem no Pecado
muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
... a um belo poema ainda que de Deus se aparte
um belo poema sempre leva a Deus!

quinta-feira, 16 de julho de 2020

E assim

Confúcio observava a catarata do rio Liu-liang, em que as águas se despenham de uma altura de trinta varas e criam uma corrente turbulenta e com espuma que se estende por quatro léguas. Nessa corrente, nem tartarugas gigantes, nem crocodilos, nem peixes conseguiriam flutuar.
De repente, viu um homem já idoso que nadava nela. Tomou-o por alguém que estaria em sofrimento e queria morrer e disse aos seus discípulos que fossem a correr pela margem para o tentarem salvar. Mas, algumas centenas de passos mais abaixo, o homem saiu da água por si mesmo. Tinha os cabelos longos e soltos e cantava enquanto caminhava sobre a areia da margem. Confúcio foi atrás dele e disse-lhe:
- Pensei que era um fantasma, mas agora vejo que é um homem. Permita-me que lhe faça uma pergunta. Tem algum método especial para conseguir deslocar-se assim na água?
- Longe disso, respondeu o homem, não tenho nenhum método.
Começou no precedente, cresceu na minha natureza e ficou perfeito no destino.
Mergulho no que é inteiramente plano e saio acompanhando o que é confuso.
Sigo o modo de agir da água e não um que seja meu.
É esta a razão por que me consigo deslocar nela.
- O que quer dizer com «começou no precedente, cresceu na minha natureza e ficou perfeito no destino»? perguntou Confúcio.
- Nasci entre estas colinas e senti-me em paz entre elas. Foi o precedente.
Cresci na água e senti-me em paz nela. Era a minha natureza.
É assim e não sei a razão porque é assim. É o destino.

Chuang Tse, tradução e comentário de António Miguel Campos, Lisboa, Relógio d'água, 2017, pp. 100-101 (XIX,10)

Nota: O título foi atribuído por mim.

sábado, 28 de janeiro de 2017

Sobre o Tempo...

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade. 


                                 Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 28 de maio de 2013

LIBERDADE

— Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.


Miguel Torga

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

"P.S. Eu te amo" (Um texto jornalístico que me emocionou)

RIO - Era uma noite de terça-feira insuspeita em Copacabana. No fim daquele dia, 23 de outubro, um grupo de frequentadores do sebo Baratos da Ribeiro faria exatamente o que faz há cinco anos: se espremeria entre as prateleiras abarrotadas da livraria para mais um encontro do Clube da Leitura, evento quinzenal em que leem trechos de livros e trocam impressões sobre contos próprios. Quando chegou a sua vez na roda, o dono do sebo e fundador do clube, Maurício Gouveia, tirou da gaveta um livro que guardava há dez anos escondido no acervo: um exemplar em italiano de “Nove contos”, do escritor americano J.D. Salinger.
Não tinha coragem de vendê-lo. Com as bordas amareladas e as páginas carcomidas, aquele “Nove racconti” guardava uma dedicatória em português na página de rosto que Maurício considerava mais bonita do que todo o livro do autor do clássico “O apanhador no campo de centeio”. Um homem comum — que poderia ser um médico, um vendedor de sapatos ou um trapezista de circo — declarava seu amor a uma mulher, em Milão, em 26 de dezembro de 1966. Maurício leu a dedicatória enorme, que começava com a frase “De tudo que vem de você, permanece em mim uma vontade de sorrir” e se encerrava com a oração “a vida é um contínuo chegar de esperanças”. Ao final, subiu o tom para ler o nome do santo: Sylvio Massa de Campos.
Foi quando um dos frequentadores do clube soltou um “opa!”. O jornalista George Patiño conhecia a família Massa, da qual Sylvio era o patriarca. Ele não vendia sapatos, trabalhava em circo ou morava em Milão: o matemático e escritor Sylvio Massa de Campos estava vivo, trabalhara a vida toda na Petrobras, tinha 74 anos e morava logo ali, no Leblon.
— Tem certeza? — perguntou Maurício.
— Trago ele aqui no próximo encontro — prometeu George.
Feito. No dia 6 de novembro, um senhor de cabelos brancos, sorriso fácil e porte altivo entrou no sebo acompanhado de duas filhas e três netos. Emocionado, recebeu das mãos de Maurício o livro perdido. Releu a dedicatória em voz alta, com pausas longas entre uma frase e outra, o que só aumentava o suspense na livraria, entrecortado pelo ruído dos netos inquietos. Depois de ser longamente aplaudido, contou aos novos colegas a história por trás daquela mensagem.
Em 1966, ele fazia mestrado em Matemática em Milão com uma bolsa do governo brasileiro. Lá, conheceu uma italianinha de nome Febea, que tinha concluído os estudos em Literatura em Londres, e acabava de retonar à Itália. Quando ela comentou que conhecia José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto, e que adoraria aprender português para ler Guimarães Rosa, Sylvio se apaixonou na hora: apesar de trabalhar com algoritmos, era na literatura que descansava seus teoremas. Prestes a terminar a pós-graduação, no entanto, logo voltaria ao Brasil. O amor foi construído à distância.
— Nosso namoro durou um ano, 136 cartas, nove livros, dois telegramas e um telefonema — contou Sylvio, para suspiro coletivo da plateia, e espanto das filhas, que não conheciam todos aqueles números. — Naquele tempo, dar um telefonema era uma fortuna. Esta dedicatória escrevi no dia do meu aniversário, já doido por ela. Eu nem sei como perdi o livro, acho que foi numa mudança nos anos 80.
Um ano depois, Febea veio morar no Brasil, e Sylvio montou um apartamento no Méier para ela. Tiveram duas filhas, Isabella e Gabriella — que a essa altura se debulhavam em lágrimas na livraria —, e viveram felizes para sempre. Até que um câncer levou Febea aos 41 anos de idade. Sylvio nunca mais se casou.
— A arte de viver é a arte de acreditar em milagres, disse o poeta italiano Cesare Pavese, e se hoje eu estou aqui é porque ele está certo. Febea foi a pessoa que eu amei mais profundamente em toda a minha vida. E ela está presente aqui, nessas cinco pessoas que fizemos, nossas duas filhas e três netos. Esse é o milagre — declarou Sylvio, lembrando, ao final, uma frase que ouvira do neto quando ele tinha 4 anos, e que levava como mantra de vida: “Vovô, nada é grave.”
Na rotina dos livreiros de sebos, dedicatórias anônimas aparecem com muita frequência. Mais até do que os exemplares usados de “O Xangô de Baker Street”, de Jô Soares, um campeão nacional em rotatividade. Os livros já chegam com cantadas, desculpas, felicitações, despedidas, malfazejos.
— O livro usado traz uma história que muitas vezes é mais interessante do que aquela que ele conta. Aqui na Baratos nós tínhamos uma caixinha para guardar os objetos encontrados dentro das páginas, como cheques, receitas médicas, ingressos de cinema, flores, contas, fotos... Daria uma exposição — comenta Maurício, que também guardou por algum tempo dois livros trocados entre amigos, com dedicatórias irônicas em que tentavam dissuadir o outro das suas convicções políticas (um era de direita; o outro, um anarquista convicto).
Mas acabou vendendo os exemplares. É da natureza da profissão: o livreiro não é um colecionador, mas um comerciante. (...)

Para ler tudo:
http://oglobo.globo.com/rio/ps-eu-te-amo-6826279


domingo, 9 de dezembro de 2012

MULHER

A mulher não é só casa
mulher-loiça, mulher-cama
ela é também mulher-asa,
mulher-força, mulher-chama

E é preciso dizer
dessa antiga condição
a mulher soube trazer
a cabeça e o coração

Trouxe a fábrica ao seu lar
e ordenado à cozinha
e impôs a trabalhar
a razão que sempre tinha

Trabalho não só de parto
mas também de construção
para um filho crescer farto
para um filho crescer são

A posse vai-se acabar
no tempo da liberdade
o que importa é saber estar
juntos em pé de igualdade

Desde que as coisas se tornem
naquilo que a gente quer
é igual dizer meu homem
ou dizer minha mulher


José Carlos Ary dos Santos