quarta-feira, 18 de março de 2009

Cavalinho, cavalinho

(António Gedeão)

"Corria o meu cavalinho
quando acordei de repente.
Mas que lindo cavalinho!
Tinha a brancura do linho,
e um olho muito verdinho,
fluorescente.

Corria, corria, corria, corria,
corria e espinoteava,
galopava e relinchava
numa autêntica euforia.

Corria, corria, corria, corria,
e de repente estacava,
e novamente corria,
corria e espinoteava
numa doida correria.
E cada vez que corria,
e em cada volta que dava,
sua crina se agitava,
se espargia e sacudia
num jeito que se diria
ser assim que lhe agradava;
­ter prazer no que fazia.
E o cavalinho corria,
corria sempre, corria,
na senda que rescendia
na manhã do laranjal.
O solo fofo gemia.
Brandos, os ramos teciam
acenos de ritual.
Tenros, os pomos tremiam
no compasso musical.

Sobre a garupa de neve,
abraçado ao seu pescoço,
eu era uma pena leve
soprada com alvoroço.
Se ele corria, eu corria,
se ele saltava, eu saltava,
tudo quanto ele fazia,
todas as voltas que dava,
tudo, tudo eu repetia,
na mesma doida euforia
que cansava e não cansava.

Mas que lindo cavalinho!
A sua crina macia,
loira de barbas de milho,
deixava um estendal de brilho
na senda que percorria.
Apetecia mexer-lhe,
sentir-lhe o fofo e o calor
daquela crina macia
que agitava e sacudia
como um doirado vapor.
Mas que lindo cavalinho!
Meu amor!

Não tinha sela nem brida,
nem cabeçada nem freio,

nem qualquer espécie de arreio
que lhe ofendesse a nudez.
Era um ser vivo total,
num emaranhado de vida
num gozo todo animal:
crina de loiro brunida,
corpo de branco cendal,
cascos de ágata polida,
ferraduras de cristal.

Mas que lindo cavalinho!
Senti-lhe o bafo cheiroso,
o tumulto harmonioso
do trote das nédias ancas.
Chamei-lhe os mais lindos nomes:
flor de nata, lua cheia,
floco de espuma na areia,
poço de camélias brancas.
Beijei-lhe o focinho ardente,
mordisquei-Ihe o corpo nu.

(Que eu sabia, intimamente,
que o cavalinho eras tu.)"

quinta-feira, 12 de março de 2009

Serão de Menino - Viriato da Cruz (Angola)

"Na noite morna, escura de breu,
enquanto na vasta sanzala do céu,
de volta de estrelas, quais fogaréus,
os anjos escutam parábolas de santos...

na noite de breu
ao quente da voz
de suas avós,
meninos se encantam
de contos bantos...

"Era uma vez uma corça
dona de cabra sem macho
...............................................
Matreiro, o cágado lento
tuc... tuc... foi entrando
para o conselho animal...
("- Tão tarde que ele chegou!")
Abriu a boca e falou
- deu a sentença final:
"- Não tenham medo da força!
Se o leão o alheio retém
- luta ao Mal! Vitória ao Bem!
tire-se ao leão, dê-se à corça."

Mas quando lá fora
o vento irado nas fresta chora
e ramos xuaxalha de altas mulembas
e portas bambas batem em massembas
os meninos se apertam de olhos abertos:

- Eué- É casumbi...

E a gente grande -bem perto dali
feijão descascando para o quitande-
a gente grande com gosto ri...

Com gosto ri, porque ela diz
que o casumbi males só faz
a quem não tem amor, aos mais
seres buscam, em negra noite,
essa outra voz de casumbi
essa outra voz - Felicidade..."

O Vagabundo na Esplanada - Manuel da Fonseca

O Vagabundo na Esplanada
Manuel da Fonseca


"O vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo.

Cerca de cinquenta anos, atarracado, magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco, puído nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta.

Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso do homem, de onde os olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade.

Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade.

Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelos simples motivo de ter mais e melhor em que pensar.

O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos, da deambulante causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos de prepotências, sempre humilhados e sempre a fingir que nada disso lhes acontecia.

Num instante, embora se desconhecessem, aliviava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer. No entanto alguém disse:

– Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela cidade.

E assim resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas.

Sem dar por tal, o homem seguia adiante.

Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o sol da tarde quente de Verão.

A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à-vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se.

Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras um sorriso de bem-estar.

Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação.

Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Estendeu as pernas, cruzou um pé sobre o outro. Céptico, mas curioso, pôs-se a ler.

O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos, como se gritassem: "Pois não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!" Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:

– Não pode...

E calou-se. O homem olhava-o com benevolência.

– Disse?– É reservado o direito de admissão – tornou o rapaz, hesitando. – Está além escrito.

Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distracção, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:

– Que direito vem a ser esse?

– Bem... – volveu o empregado. – A gerência não admite... Não podem vir aqui certas pessoas.

– E é a mim que vem dizer isso?O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.– Talvez que a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom baixo e magoado. – Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa.O empregado nem podia falar.Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:– Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo."