segunda-feira, 20 de julho de 2009

Os paraísos artificiais

"Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para
desenraizar as árvores.

O cântico das aves - não há cânticos,
mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º.
E a música do vento frio nos pardieiros.

Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida na minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito."


Jorge de Sena, retirado de Pedra Filosofal

Outra contribuição do André para este blogue. Obrigada!

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Descalça vai para a fonte

"Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura."

Luis Vaz de Camões

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Porque

"Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não."


Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo

Este poema foi-me enviado pelo André, para que constasse deste blogue.
Obrigada André!

Posso ter defeitos, viver ansioso...

"Posso ter defeitos, viver ansioso
E ficar irritado algumas vezes
Mas não esqueço de que a minha vida
É a maior empresa do mundo,
E posso evitar que ela vá à falência.

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver
Apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas
E se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si,
Mas ser capaz de encontrar um oásis
No recôndito da sua alma.

É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não se ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo
É ter coragem de ouvir um "não"
É ter segurança para receber uma crítica,
Mesmo que injusta.

Pedras no caminhos?
Guardo todas, um dia construirei um castelo..."

domingo, 5 de julho de 2009

Descalço

"Vazio de andar descalço em cima da areia fina, descalço de infância, descalço de apalpões ingénuos por cima de soutiens pouco sofisticados. Descalço das memórias daquele bolo de anos que ficou com a marca do teu pé na cobertura de acúcar azul e descalço das velas que não conseguíamos acender, mesmo protegidos pelo pára-vento de pano gasto, durante aquela nortada. Descalço do mar picado, da espuma amarela e da chuva monótona de um Agosto cinzento, descalço da convicção de que tudo seria assim para sempre. Descalço dos jogos do mata quando a maré esvaziava e os sargaços tomavam conta de tudo; descalço da tijoleira fervida a que encostávamos as costas molhadas de sal, descalço das pernas que ficavam coladas, a minha e a tua, no banco de trás de um carro de que já não lembramos a marca, descalço das últimas labaredas da última fogueira do última madrugada do último verão; descalço das nossa solidões tão juntas. Descalço de um mundo que julgávamos não ter os espinhos que se nos cravaram nos pés."
Texto de FTA, colhido no blogue A Grande Loja dos Trezentos, em Abril de 2009
(talvez o primeiro texto de blogue que achei que devia ser salvo)

Quem me leva os meus fantasmas?

"Aquele era o tempo
Em que as mãos se fechavam
E nas noites brilhantes as palavras voavam,
E eu via que o céu me nascia dos dedos
E a Ursa Maior eram ferros acesos.
Marinheiros perdidos em portos distantes,
Em bares escondidos,
Em sonhos gigantes.
E a cidade vazia,
Da cor do asfalto,
E alguém me pedia que cantasse mais alto.

Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde e´ a estrada


Aquele era o tempo
Em que as sombras se abriam,
Em que homens negavam
O que outros erguiam.
E eu bebia da vida em goles pequenos,
Tropeçava no riso, abraçava venenos.
De costas voltadas não se vê o futuro
Nem o rumo da bala
Nem a falha no muro.
E alguém me gritava
Com voz de profeta
Que o caminho se faz
Entre o alvo e a seta.

Quem leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem leva os meus fantasmas?
Quem leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde e a estrada



De que serve ter o mapa
Se o fim está traçado,
De que serve a terra à vista
Se o barco está parado,
De que serve ter a chave
Se a porta está aberta,
De que servem as palavras
Se a casa está deserta?

Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?"

E me diz onde e a estrada