sábado, 20 de fevereiro de 2010

A Magia dos Sons

"Em que momento, em que história, em
que frase, os sons das palavras tomaram
conta de nós?
Quando foi que começámos a entender
a música que as palavras têm por dentro?
Devo confessar que, no meu caso, tudo se processou
da maneira mais estranha e menos convencional.
Passei a infância rodeada de tias velhas, entre
paredes de casarões com enormes corredores que
rangiam pela noite dentro, sob os passos cadenciados
da tia Clara, que sofria de insónias.
Sempre me lembro de haver em casa alguém
doente.
Muito doente. Gravemente doente. Moribundo.
Morto.
E então achei que não havia palavra mais bonita
e mais doce do que a palavra “MORIBUNDO”.
Repetia-a muitas vezes, “mo-ri-bun-do”, destacando
bem as suas sílabas mas sem saber o
seu significado, ou não me importando muito
com ele.
Para mim, as palavras sempre tiveram vida
própria – para lá de todos os seus possíveis significados.
Naquele tempo, há quase sessenta anos, as
pessoas tinham muito medo dos hospitais, e era
uma vergonha deixar que algum parente da província
lá morresse. Era como se o tivéssemos largado,
abandonado a meio do caminho, como nas
histórias que à noite nos contavam.
Por isso, assim que algum adoecia com gravidade,
logo o traziam para nossa casa.
Então, era um corrupio de médicos e e enfermeiros,
e a tia Clara a dar ordens a toda a gente,
e a tratar de tudo – e apareciam então palavras
lindíssimas como “MERCÚRIO”, “TEMPERATURA”,
“ÁLCOOL”, “ÉTER “ – palavras que se desfaziam
na minha boca como frutos maduros.
Depois um dia o tio morria e então as velhas
tias desmanchavam a sala de jantar — e a mesa
enorme, onde todos os dias almoçávamos e jantávamos,
ficava empilhada a um canto nas suas
muitas tábuas, enquanto o tio era trazido do
quarto e metido num caixão, colocado mesmo a
meio da sala de jantar.
O tio transformava-se então no “FALECIDO”,
palavra de que eu também gostava muito — mas
nada, oh nada que se comparasse à maravilha do
“TIOZINHO-QUE-DEUS-HAJA” com que o baptizavam
alguns dias depois.
(Durante muito tempo, “QUEDEUZAJA” foi
uma palavra única na minha cabeça, com significado
que me escapava, mas encaixada entre os
sons mais bonitos que a língua me podia oferecer.)
Vinha a seguir o “VELÓRIO”- palavra mágica,
santo Deus!, com aquele “ó” muito aberto, muito
prolongado, e em toda a sua força esdrúxula…—
e o cheiro a álcool e a éter , entranhado nas paredes
da nossa casa, começava a misturar-se com o
perfume adocicado dos “CRISÂNTEMOS” e dos
“LÍRIOS”—mais duas palavras para a minha
colecção de maravilhas.
Depois o caixão desaparecia pelas escadas
abaixo, regressava a mesa, e nós voltávamos a
almoçar e a jantar no exacto lugar onde estivera o
tio morto, e a vida continuava.
E, durante muitos dias, as conversas giravam
todas à volta da doença do morto – e os meus
ouvidos captavam, e a minha boca repetia depois,
no silêncio do meu quarto, sonoridades extraordinárias
como “PNEUMONIA”, “SEPTICÉMIA”,
“EMBOLIA”—terminando sempre com a mais
bela de todas, a que a tia Clara repetia sempre, no
fim do extenso rol das desgraças : “MARTÍRIO”
— Foi um martírio – murmurava ela.
E todos aqueles “ii” soavam como música dentro
dos meus ouvidos.
Repito: pode não ter sido a maneira mais convencional,
mas foi aqui, no meio deste estranho
cenário, que eu descobri a magia dos sons que
constroem as palavras.
Que constroem os sonhos."

Crónica de Alice Vieira, publicada em Tempo Livre:Revista do Inatel, nº202, Março de 2009

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Jogo

"Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças."


Nuno Júdice
(colhido em Fábulas Incompletas)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A Arte de Ser Feliz

"Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, a às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim."

Publicado em 1962, em Quadrante 1; inserido em Boa Companhia: Crônicas

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Pequenas Epifanias

"Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector “Tentação” na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome."

(Publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, 22/04/1986 e inserido no livro Boa Companhia: Crônicas, São Paulo, Companhia das Letras, 2006)