segunda-feira, 17 de março de 2025

O PODER DO TEU SORRISO

Repara só no poder do teu sorriso. Sim! Do teu!

Seja ele mais fechado ou rasgado, revele ele uma espécie de ladrilhos brancos impecavelmente perfilados ou denuncie aquela peça fora de sítio, naquele desalinho que o torna tão especial, esse teu sorriso é poderoso.
É que, quando sorris, todo o teu corpo vira ginásio e uma imensidão de músculos são contraídos. E quando uma gargalhada desponta, o teu cérebro vira pista de dança para neurotransmissores, e bolas de espelho em forma de dopamina acompanham o ritmo de um coração que bate (mesmo), ativando a circulação sanguínea, oxigenando cada bocadinho de ser, assegurando-te da vida que trazes em ti.
E já reparaste que, quando sorris, o teu rosto ganha vida, os olhos enchem-se de brilho, as maçãs do rosto emergem e o queixo ganha um destaque geometricamente enquadrado, numa harmonização facial instantânea e gratuita, daquelas, naturais, que não plastificam, de forma standardizada, a emoção?
E quando sorris, abrem-se as cortinas da tua alma e mostras a melhor versão daquilo que sabes ser, mesmo que, por vezes, a prefiras esconder; mesmo que, por vezes, essa versão insista em esconder-se até de ti; mesmo que, por vezes, te convenças de que ela já se evadiu daí de dentro, sem aviso prévio e sem deixar pistas que te levem no seu encalço. Mas, escuta: se até os foragidos de Vale de Judeus foram encontrados, essa tua versão não poderá fugir, assim, sem mais nem menos, por muito mais tempo…
O sorriso é uma espécie de código postal que encurta a distância entre pessoas, uma via rápida para a empatia, que derruba barreiras e, em jeito de bandeira branca, avisa o outro que não lhe és um perigo. E quando ris e sorris, contagias o mundo à tua volta, viras farol sem que te apercebas, tornas-te luz no fundo de um qualquer túnel, despontas um feixe luminoso por entre a fenda no peito enpedernido de alguém e podes virar GPS, certeiro e providente, mesmo sem necessidade de instruções robotizadas.
O teu sorriso pode não mudar o mundo, mas haverá, certamente, muitos mundos a precisar dele. A começar pelo teu. Por isso, mesmo que não te apeteça, mesmo nos dias em que sintas que uma espécie de corda atada a um bloco de betão te puxa para o lodo do fundo de um lago escuro, sorri. Porque um sorriso pode, simplesmente, ser a bóia que nos mantém à tona, na espuma dos dias, ou virar bote que nos leva a bom porto.
Rir e sorrir é o melhor dos remédios, não te esqueças! E não vem nem com contratos de letras pequenas, nem com bula de contra-indicações. Por isso, usa-o em doses generosas e várias vezes ao dia. Acredita: o teu sorriso é mesmo poderoso!

(Publicado no Diário de Leiria, 14 de Março de 2025)

sábado, 8 de março de 2025

falange, falanginha, falangeta

 Se a minha mão for pequena na

tua mão, pede-lhe, com jeitinho, 

que seja maior por um momento


e será asa aberta sobre o teu peito,

guardando-te da culpa e do temor.

Por um momento, a minha mão


pode ter o tamanho de outra mão,

o tamanho exacto da tua mão, o


tamanho do mundo, se lhe pedires.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Livros e Palavras

"Era uma vez um livro de histórias cheio de palavras como todos os livros. Estava guardado na prateleira de uma estante, num armário ao fundo do fundo de uma casa e há muito tempo que ninguém lhe pegava para o folhear e o ler. As palavras estavam para ali muito alinhadinhas mas fartas de estar fechadas nas páginas do livro, sem ninguém que as lesse e as dissesse em voz alta, e lhes permitisse espreguiçarem-se e darem uma voltinha para estender as pernas.
Não é de admirar que um dia, as letras que formavam a palavra "borboleta" tenham começado a tremelicar, a chocar umas com as outras e, de repente, a palavra borboleta tenha saído do livro a voar.
Atrás dela seguiu a palavra "foguetão" que não quis ficar para trás e, num instante, entrou em órbita.
Entusiasmada, a palavra "canguru" saltou de página em página até saltar também do livro para fora.
E muitas outras palavras seguiram este estranho exemplo.
A palavra "cavalo" lá se foi, naturalmente, a galope. A palavra "fervura" ferveu e desapareceu numa nuvem de vapor no ar.
A palavra "gelado" derreteu-se.
A palavra "sapato" disse que precisava de umas meias solas e pôs-se a andar.
Cada palavra lá foi andando da maneira que pôde. Mesmo palavras pesadas como "gordo", ou lentas como "caracol", com maior ou menor dificuldade, acabaram por escapar do livro.
E foi assim que, a pouco e pouco, as páginas foram ficando em branco e o livro vazio e sem histórias para contar.
No meio daquelas páginas todas, só tinha ficado a palavra "lápis" que se sentiu muito triste ao ver-se ali sozinha.
Por isso, pôs-se a inventar uma história e começou a escrevê-la cheia de palavras redondas, quadradas e bicudas, umas mais magrinhas, outras barrigudas. E escreveu palavras e palavras e palavras a rodo e, assim, acabou por encher de novo o livro todo."
José Fanha, A Noite em que a noite não chegou.

terça-feira, 23 de março de 2021

Se eu Fosse um Padre

 Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,

não falaria em Deus nem no Pecado
muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
... a um belo poema ainda que de Deus se aparte
um belo poema sempre leva a Deus!

quinta-feira, 16 de julho de 2020

E assim

Confúcio observava a catarata do rio Liu-liang, em que as águas se despenham de uma altura de trinta varas e criam uma corrente turbulenta e com espuma que se estende por quatro léguas. Nessa corrente, nem tartarugas gigantes, nem crocodilos, nem peixes conseguiriam flutuar.
De repente, viu um homem já idoso que nadava nela. Tomou-o por alguém que estaria em sofrimento e queria morrer e disse aos seus discípulos que fossem a correr pela margem para o tentarem salvar. Mas, algumas centenas de passos mais abaixo, o homem saiu da água por si mesmo. Tinha os cabelos longos e soltos e cantava enquanto caminhava sobre a areia da margem. Confúcio foi atrás dele e disse-lhe:
- Pensei que era um fantasma, mas agora vejo que é um homem. Permita-me que lhe faça uma pergunta. Tem algum método especial para conseguir deslocar-se assim na água?
- Longe disso, respondeu o homem, não tenho nenhum método.
Começou no precedente, cresceu na minha natureza e ficou perfeito no destino.
Mergulho no que é inteiramente plano e saio acompanhando o que é confuso.
Sigo o modo de agir da água e não um que seja meu.
É esta a razão por que me consigo deslocar nela.
- O que quer dizer com «começou no precedente, cresceu na minha natureza e ficou perfeito no destino»? perguntou Confúcio.
- Nasci entre estas colinas e senti-me em paz entre elas. Foi o precedente.
Cresci na água e senti-me em paz nela. Era a minha natureza.
É assim e não sei a razão porque é assim. É o destino.

Chuang Tse, tradução e comentário de António Miguel Campos, Lisboa, Relógio d'água, 2017, pp. 100-101 (XIX,10)

Nota: O título foi atribuído por mim.

sábado, 28 de janeiro de 2017

Sobre o Tempo...

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade. 


                                 Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 28 de maio de 2013

LIBERDADE

— Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.


Miguel Torga