segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Poema de Natal

"Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrela a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente."


Vinícius de Moraes

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Ser Professor

"Ser professor é ser artista
malabarista,
pintor, escultor, doutor,
musicólogo, psicólogo...

É ser mãe, pai, irmã, avó,
é ser palhaço, bagaço...
É ser ciência e paciência...
É ser informação.

É ser acção,é ser bússola, é ser farol.
É ser luz, é ser sol.
Incompreendido?... Muito.
Defendido? Nunca.

O seu filho passou?...
Claro, é um génio.
Não passou?
O professor não ensinou.

Ser professor
é um vício ou vocação?
É outra coisa...
É ter nas mãos o mundo de amanhã.

Amanhã.
Os alunos vão-se...
E ele, o mestre, de mãos vazias,
fica com o coração partido.

Recebe nova turmas,
novos olhinhos ávidos de cultura
e ele, o professor, vai despejando
com toda a ternura, o saber, a orientação
nas cabecinhas novas que amanhã
luzirão no firmamento da pátria.

Fica a saudade
A amizade.
O pagamento real?
Só na eternidade."


Autor anónimo, professor da UNL, (segundo o site da Direcção Regional da Educação dos Açores). Recebida em comentário de blogue.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Aos poetas

"Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.

Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão."


Miguel Torga

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Marião

"Adeus oh Vale de Gouvinhas, Marião
Não és vila nem cidade, Marião
Sim, sim Marião
Não,Não Marião

És um povo pequenino, Marião
Feito à minha vontade, Marião
Sim, sim Marião
Não,Não Marião

Hei-de cercar Vale Gouvinhas, Marião
Com trinta metros de fita, Marião
Sim, sim Marião
Não,Não Marião

À porta do meu amor, Marião
Hei-de pôr a mais bonita, Marião
Sim, sim Marião
Não,Não Marião

Os meus olhos não são olhos, Marião
Sem estarem os teus de fronte, Marião
Sim, sim Marião
Não,Não Marião

Parecem dois rios de água, Marião
Quando vão de monte em monte, Marião
Sim, sim Marião
Não,Não Marião

Já corri os mares em volta, Marião
Com uma vela branca acesa, Marião
Sim, sim Marião
Não,Não Marião

Em todo o mar achei água, Marião
Só em ti pouca firmeza, Marião
Sim, sim Marião
Não,Não Marião"

(Letra e música popular interpretada por Brigada Victor Jara)

domingo, 5 de setembro de 2010

Cavalo à Solta

Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve breve
instante da loucura.

Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa.

Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo.

Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.

Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo.

Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura.


José Carlos Ary dos Santos

sábado, 28 de agosto de 2010

Dúvida

"Eu corro atrás da memória
De certas coisas passadas
Como de um conto de fadas,
De uma velha, velha história...

Tão longe do que hoje sou
Que nem sei se quem recorda
Foi aquele que as passou,
Ou se apenas as sonhou
E agora, súbito, acorda."


Francisco Bugalho

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Hora de Amor

"Vem.
Adormece encostada a este braço
Mais débil do que o teu.
Entrega te despida
Nas mãos dum homem solitário
Que a maldição não deixa
Que possa nem sequer lutar por ti.
Vem,
Sem que eu te chame, ou te prometa a vida.
E sente que ninguém,
No descampado deste mundo, tem
A alma mais guardada e protegida."


Miguel Torga

sábado, 17 de julho de 2010

Um poema

"Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar,
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz..."

Miguel Torga

A Vontade da Terra Revisitada

"(...)Onde te refugias na certeza da tua vida. Onde te aguardo quero que saibas para sempre. Onde serias minha na loucura da dança matinal onde os cães nos acordam do desespero da noite tranquila. Onde eternamente de mim fazes parte desde esse momento da maré baixa do coração vazio.(...)"

extracto do texto, com o título em epígrafe, publicado em http://sonaminhacabeca.wordpress.com/

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Perturbação

Quando estou, quando estou apaixonado
Tão fora de mim eu vivo
Que nem sei se vivo ou morto
Quando estou apaixonado.

Não pode a fera comigo
Quando estou, quando estou apaixonado,
Mas me derrota a formiga
Se é que estou apaixonado.

Estarei, quem, e entende, apaixonado
Neste arco de danação?
Ou é a morta paixão
Que me deixa, que me deixa neste estado?


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Tu

"Tu
como uma abelha está certa do caminho
de volta a casa
tu não sabes que há flores que esperam
de noite e de dia
pelo vento das tuas asas
tu não sabes que eu as vejo abrirem-se
na manhã em segredo
tu não sabes que murmuram o teu nome
tu não sabes que são elas que te chamam
de longe no longe do tempo
e por isso tu não sabes que voas para elas
tu não sabes que existes para elas
Tu
tens o teu caminho certo de volta a casa
mas das flores que se abrem em segredo
no longe do vento do murmúrio do tempo
nada sabes"

João Carvalho

colhido em http://sonaminhacabeca.wordpress.com/

O dia em que nasci morra e pereça

"O dia em que eu nasci, morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!"

Luiz Vaz de Camões

terça-feira, 8 de junho de 2010

A Minha Aldeia

"Minha aldeia é todo o mundo.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence.

Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Ângulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que os homens da minha aldeia
são centenas de milhões.

Os homens da minha aldeia
divergem por natureza.
O mesmo sonho os separa,
a mesma fria certeza
os afasta e desampara,
rumorejante seara
onde se odeia em beleza.

Os homens da minha aldeia
formigam raivosamente
com os pés colados ao chão.
Nessa prisão permanente
cada qual é seu irmão.
Valência de fora e dentro
ligam tudo ao mesmo centro
numa inquebrável cadeia.
Longas raízes que imergem,
todos os homens convergem
no centro da minha aldeia."


António Gedeão

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Impressão Digital

Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes,
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

domingo, 25 de abril de 2010

"O Povo Unido
Jamais será vencido"

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Hoje não tem crônica

Hoje não escrevo

Chega um dia de falta de assunto. Ou, mais propriamente, de falta de apetite para os milhares de assuntos.

Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, purê de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.

O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam para depois comentá-los com a maior cara-de-pau (“com isenção de largo espectro”, como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego - às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.

Ah, você participa com palavras? Sua escrita - por hipótese - transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever O Capital é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu O Capital. Não é todos os dias que se mete uma idéia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da operação.

Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incômodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhe os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.

E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado de espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia... explosiva. Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isso entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando...

Então hoje não tem crônica.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 21 de março de 2010

fábula minha e tua

"uma flor nem sempre é uma flor

(nunca o disse
quando via rosas
crescerem em ti)

um veleiro sem mastros pode navegar

(nunca o confessaste
quando remendavas
velas em mim)"



colhido em fábulas incompletas

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A Magia dos Sons

"Em que momento, em que história, em
que frase, os sons das palavras tomaram
conta de nós?
Quando foi que começámos a entender
a música que as palavras têm por dentro?
Devo confessar que, no meu caso, tudo se processou
da maneira mais estranha e menos convencional.
Passei a infância rodeada de tias velhas, entre
paredes de casarões com enormes corredores que
rangiam pela noite dentro, sob os passos cadenciados
da tia Clara, que sofria de insónias.
Sempre me lembro de haver em casa alguém
doente.
Muito doente. Gravemente doente. Moribundo.
Morto.
E então achei que não havia palavra mais bonita
e mais doce do que a palavra “MORIBUNDO”.
Repetia-a muitas vezes, “mo-ri-bun-do”, destacando
bem as suas sílabas mas sem saber o
seu significado, ou não me importando muito
com ele.
Para mim, as palavras sempre tiveram vida
própria – para lá de todos os seus possíveis significados.
Naquele tempo, há quase sessenta anos, as
pessoas tinham muito medo dos hospitais, e era
uma vergonha deixar que algum parente da província
lá morresse. Era como se o tivéssemos largado,
abandonado a meio do caminho, como nas
histórias que à noite nos contavam.
Por isso, assim que algum adoecia com gravidade,
logo o traziam para nossa casa.
Então, era um corrupio de médicos e e enfermeiros,
e a tia Clara a dar ordens a toda a gente,
e a tratar de tudo – e apareciam então palavras
lindíssimas como “MERCÚRIO”, “TEMPERATURA”,
“ÁLCOOL”, “ÉTER “ – palavras que se desfaziam
na minha boca como frutos maduros.
Depois um dia o tio morria e então as velhas
tias desmanchavam a sala de jantar — e a mesa
enorme, onde todos os dias almoçávamos e jantávamos,
ficava empilhada a um canto nas suas
muitas tábuas, enquanto o tio era trazido do
quarto e metido num caixão, colocado mesmo a
meio da sala de jantar.
O tio transformava-se então no “FALECIDO”,
palavra de que eu também gostava muito — mas
nada, oh nada que se comparasse à maravilha do
“TIOZINHO-QUE-DEUS-HAJA” com que o baptizavam
alguns dias depois.
(Durante muito tempo, “QUEDEUZAJA” foi
uma palavra única na minha cabeça, com significado
que me escapava, mas encaixada entre os
sons mais bonitos que a língua me podia oferecer.)
Vinha a seguir o “VELÓRIO”- palavra mágica,
santo Deus!, com aquele “ó” muito aberto, muito
prolongado, e em toda a sua força esdrúxula…—
e o cheiro a álcool e a éter , entranhado nas paredes
da nossa casa, começava a misturar-se com o
perfume adocicado dos “CRISÂNTEMOS” e dos
“LÍRIOS”—mais duas palavras para a minha
colecção de maravilhas.
Depois o caixão desaparecia pelas escadas
abaixo, regressava a mesa, e nós voltávamos a
almoçar e a jantar no exacto lugar onde estivera o
tio morto, e a vida continuava.
E, durante muitos dias, as conversas giravam
todas à volta da doença do morto – e os meus
ouvidos captavam, e a minha boca repetia depois,
no silêncio do meu quarto, sonoridades extraordinárias
como “PNEUMONIA”, “SEPTICÉMIA”,
“EMBOLIA”—terminando sempre com a mais
bela de todas, a que a tia Clara repetia sempre, no
fim do extenso rol das desgraças : “MARTÍRIO”
— Foi um martírio – murmurava ela.
E todos aqueles “ii” soavam como música dentro
dos meus ouvidos.
Repito: pode não ter sido a maneira mais convencional,
mas foi aqui, no meio deste estranho
cenário, que eu descobri a magia dos sons que
constroem as palavras.
Que constroem os sonhos."

Crónica de Alice Vieira, publicada em Tempo Livre:Revista do Inatel, nº202, Março de 2009

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Jogo

"Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças."


Nuno Júdice
(colhido em Fábulas Incompletas)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A Arte de Ser Feliz

"Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, a às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim."

Publicado em 1962, em Quadrante 1; inserido em Boa Companhia: Crônicas

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Pequenas Epifanias

"Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector “Tentação” na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome."

(Publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, 22/04/1986 e inserido no livro Boa Companhia: Crônicas, São Paulo, Companhia das Letras, 2006)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Ai, flores, ai, flores do verde pino

"Ai, flores, ai, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai, Deus, e u é?

Ai, flores, ai, flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi à jurado?
Ai, Deus, e u é?

--- Vós me preguntades polo vosso amigo?
E eu ben vos digo que é sano e vivo.
Ai, Deus, e u é?

Vós me preguntades polo vosso amado?
E eu ben vos digo que é vivo e sano.
Ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é sano e vivo
e seerá vosco ante o prazo saido.
Ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é vivo e sano
e seerá vosco ante o prazo passado.
Ai, Deus, e u é?"

El-Rei D. Dinis

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Receita de Ano Novo

"Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre. "

Carlos Drummond de Andrade"

Com os meus agradecimentos a Mendes e os desejos de Feliz Ano de 2010 para todos aqueles de quem gosto.