quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Os Professores

"O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.


O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva. O trabalho dos professores é a generosidade.

Basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do quanto devemos aos professores. Devemos-lhes muito daquilo que somos, devemos-lhes muito de tudo. Há algo de definitivo e eterno nessa missão, nesse verbo que é transmitido de geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de professores, os seus blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de trás, os professores de hoje são iguais de ontem. O acto que praticam é igual ao que foi exercido por outros professores, com outros penteados, que existiram há séculos ou há décadas. O conhecimento que enche as páginas dos manuais aumentou e mudou, mas a essência daquilo que os professores fazem mantém-se. Essência, essa palavra que os professores recordam ciclicamente, essa mesma palavra que tendemos a esquecer.

Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança. Vemo-los a dar forma e sentido à esperança de crianças e de jovens, aceitamos essa evidência, mas falhamos perceber que são também eles que mantêm viva a esperança de que todos necessitamos para existir, para respirar, para estarmos vivos. Ai da sociedade que perdeu a esperança. Quem não tem esperança não está vivo. Mesmo que ainda respire, já morreu.

Envergonhem-se aqueles que dizem ter perdido a esperança. Envergonhem-se aqueles que dizem que não vale a pena lutar. Quando as dificuldades são maiores é quando o esforço para ultrapassá-las deve ser mais intenso. Sabemos que estamos aqui, o sangue atravessa-nos o corpo. Nascemos num dia em que quase nos pareceu ter nascido o mundo inteiro. Temos a graça de uma voz, podemos usá-la para exprimir todo o entendimento do que significa estar aqui, nesta posição. Em anos de aulas teóricas, aulas práticas, no laboratório, no ginásio, em visitas de estudo, sumários escritos no quadro no início da aula, os professores ensinaram-nos que existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram apresentar. Se desligarmos a televisão por um instante, chegaremos facilmente à conclusão que, como nas aulas de matemática ou de filosofia, não há problemas que disponham de uma única solução. Da mesma maneira, não há fatalidades que não possam ser questionadas. É ao fazê-lo que se pensa e se encontra soluções.

Recusar a educação é recusar o desenvolvimento.

Se nos conseguirem convencer a desistir de deixar um mundo melhor do que aquele que encontrámos, o erro não será tanto daqueles que forem capazes de nos roubar uma aspiração tão fundamental, o erro primeiro será nosso por termos deixado que nos roubem a capacidade de sonhar, a ambição, metade da humanidade que recebemos dos nossos pais e dos nossos avós. Mas espero que não, acredito que não, não esquecemos a lição que aprendemos e que continuamos a aprender todos os dias com os professores. Tenho esperança."

José Luís Peixoto, revista Visão de 13 de Outubro de 2011

Colhido em http://peroladecultura.blogspot.com/2011/10/os-professores-por-jose-luis-peixoto.html?spref=fb, no dia 16 de Outubro de 2011

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Com Fúria e Raiva

"Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe, muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra"


Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Pranto pelo dia de hoje

"Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas"


Sophia de Mello Breyner (1919-2004)

A Princesa e a Ervilha

"Era uma vez um príncipe que queria casar com uma princesa, mas com uma verdadeira princesa. Deu a volta ao mundo na esperança de encontrar uma menina assim, mas em vão. Princesas encontrou ele muitas, mas era difícil ter a certeza de que eram verdadeiras princesas. Havia sempre alguma coisa nelas que lhe parecia suspeito. Por fim, regressou ao seu palácio muito triste, porque desejava muito casar com uma princesa verdadeira.

Uma noite, desabou uma tempestade terrível; trovejava, relampejava, e chovia a cântaros. De súbito, alguém bateu à porta do palácio e o velho rei, pai do príncipe, apressou-se a abrir.

Era uma princesa, mas, santo Deus, em que estado a chuva e a tempestade a haviam posto! A água escorria-lhe dos cabelos e das roupas, entrava-lhe pela biqueira dos sapatos e voltava a sair pelos tacões. Todavia, afirmou ser uma verdadeira princesa.

«Isso é o que iremos descobrir», pensou a velha rainha. Sem dizer nada, entrou no quarto de dormir, tirou os lençóis e os colchões e colocou no fundo da cama uma ervilha. Em seguida, pegou em vinte colchões, estendeu-os sobre a ervilha, e sobre eles empilhou ainda vinte cobertas.

Era a cama destinada à princesa.

No dia seguinte, perguntou-lhe como passara ela a noite.

- Muito mal, na verdade! – respondeu. - Mal consegui fechar os olhos toda a noite! Sabe Deus o que tinha a cama; era qualquer coisa dura que me pôs a pele toda roxa. Foi horrível!

Ouvindo esta resposta, reconheceram que se tratava de uma verdadeira princesa, porque sentira uma ervilha através dos vinte colchões e das vinte cobertas. Que mulher, a não ser uma princesa, poderia ter uma pele de tal modo delicada?

O príncipe, convencido que ela era uma verdadeira princesa, tomou-a como esposa. A ervilha foi posta no museu, onde deve encontrar-se ainda, a não ser que alguém a tenha roubado.

E aqui está uma história verdadeira."

Hans Christian Andersen

domingo, 1 de maio de 2011

O Menino de Sua Mãe

"No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho unico, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe.»

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe"


Fernando Pessoa

domingo, 24 de abril de 2011

Crónica dos Dias - Domingo de Páscoa

"Nasci a um domingo de Páscoa. O meu 11º aniversário também coincidiu com essa data, depois... nunca mais.
Isto sempre me fez confusão: deveria haver uma lógica, uma regularidade na “data móvel” da Páscoa...Para mim isto era ainda mais estranho por ter aprendido que se celebrava a morte e ressureição de Jesus Cristo e todas as mortes que conheço têm uma data fixa!...Outra coisa que me intrigava era o facto de se falar de Páscoa judaica, quando eu tinha aprendido que os judeus não aceitaram Cristo como o filho de Deus...Será que a Páscoa não era uma data só cristã?
Foram então estas as questões que resolvi pesquisar nesta Crónica de Abril, aproveitando a oportunidade que estas crónicas me dão de perseguir e esclarecer as minhas dúvidas sobre os dias assinalados nos calendários.
Então cá vai o resultado da pesquisa:
Parece que sempre se celebrou a Páscoa, ou pelo menos perdeu-se no tempo o início das celebrações (pagãs) ligadas ao equinócio da Primavera e a uma deusa da fertilidade cultuada pelos povos germânicos, Eostre ou Ishtar, nome que parece ter dado origem à designação de Páscoa nas línguas germânicas: “Easter”.
Já a designação latina de Páscoa parece ter origem directa na festa judaica “Pesach” (ou a Páscoa judaica).Esta festa, uma das mais importantes do calendário judeu, comemora a libertação do povo de Israel da escravidão a que estava sujeito no Egipto. Segundo a tradição judaica foi nesta altura que Deus libertou o povo de Israel, que, liderado por Moisés, protagonizou o “êxodo” através do deserto. A forma erudita de perceber esta tradição é lendo o livro do Êxodo do Antigo Testamento bíblico, a forma mais “light” será vendo o filme que a Disney fez há alguns anos intitulado “O Príncipe do Egipto”.
Nos primeiros tempos desta festa judaica (que ainda hoje se celebra) faziam-se sacrifícios de cordeiros no templo de Jerusalém.
Para alguns estudiosos do Cristianismo a morte de Cristo aconteceu, de forma propositada, na Páscoa (Pesach) pois Jesus Cristo é considerado o “Cordeiro de Deus” imolado para a salvação do pecado, cujo sangue significaria uma nova aliança entre o divino e os homens. A ressurreição de Cristo ocorrida a um domingo justifica o abandono do sábado judeu como dia de descanço.
Até aqui já consegui perceber a existência da Páscoa Cristã, da Páscoa Judaica e da ligação entre elas, mas, porque é que a data não é sempre a mesma?
O dia de Páscoa é o primeiro domingo depois da lua cheia que marca o equinócio da Primavera. Tudo isto foi assumido e organizado pela Igreja Católica no Concílio de Niceia, em 325 (d.C., obviamente).Mas, para fazer uma tabela definitiva, a Igreja serviu-se não da verdadeira lua, mas de uma lua imaginária, conhecida por “lua eclesiástica”(!).
A quarta-feira de cinzas ocorre 46 dias antes da Páscoa, dando início ao período religioso da Quaresma. A Páscoa foi definida como uma data móvel, sempre entre as datas de 22 de Março e 24 de Abril. Com a fixação do (nosso) calendário gregoriano, em 1582, a sequência das datas da Páscoa foi fixada num ciclo de, aproximadamente, 5.700.000 anos.
Segundo as tabelas que encontrei não voltarei a fazer anos num domingo de Páscoa, mas já consegui deslindar (um pouco) toda esta amálgama de datas e simbolismos misturados.
Então, sintetizando, na Páscoa assinala-se simultaneamente, conforme os credos:
1- a chegada da Primavera, celebrada como tempo de renovação, de reflorescimento, de acasalamento, de fertilidade, cuja símbologia ainda permanece no coelho e nos ovos de Páscoa. Aqui fiquei muito mais tranquila por poder afastar a ideia de uma ligação anti-natura entre uma galinha e um coelho de que resultariam os ovos coloridos; afinal, parece ser uma tradição pagã, popularizada por imigrantes alemães na América que escondiam ovos em tocas de coelhos, que deveriam ser procurados na manhã do domingo de Páscoa, (enfim, são as tradições da pátria de George W. Bush!).
2- O Pessach: conjunto de rituais da religião judaica que assinalam a passagem da escravatura para a liberdade do povo de Israel (hebreus ou judeus).
3- A morte e ressureição de Jesus Cristo, que, por insondáveis desígnios da Igreja Católica, se “fixou” como uma “data móvel”.
E pronto, aqui fica o resultado de mais uma pesquisa sobre os dias, que me deu a oportunidade de esclarecer um pouco as dúvidas (que há anos arrasto) sobre um dia de Abril, que foi também o do meu nascimento."
L.C.

quarta-feira, 2 de março de 2011

POEMA DA AUTO-ESTRADA

"Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata,
Vermelho de alizarina
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa de lambreta.
Agarrada ao companheiro
na volu'pia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio nao e' com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pelo cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que enterra.
Tudo foge 'a sua volta,
o ceu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demonio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
sao ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta
Vai na brasa de lambreta."