segunda-feira, 21 de junho de 2010

Perturbação

Quando estou, quando estou apaixonado
Tão fora de mim eu vivo
Que nem sei se vivo ou morto
Quando estou apaixonado.

Não pode a fera comigo
Quando estou, quando estou apaixonado,
Mas me derrota a formiga
Se é que estou apaixonado.

Estarei, quem, e entende, apaixonado
Neste arco de danação?
Ou é a morta paixão
Que me deixa, que me deixa neste estado?


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Tu

"Tu
como uma abelha está certa do caminho
de volta a casa
tu não sabes que há flores que esperam
de noite e de dia
pelo vento das tuas asas
tu não sabes que eu as vejo abrirem-se
na manhã em segredo
tu não sabes que murmuram o teu nome
tu não sabes que são elas que te chamam
de longe no longe do tempo
e por isso tu não sabes que voas para elas
tu não sabes que existes para elas
Tu
tens o teu caminho certo de volta a casa
mas das flores que se abrem em segredo
no longe do vento do murmúrio do tempo
nada sabes"

João Carvalho

colhido em http://sonaminhacabeca.wordpress.com/

O dia em que nasci morra e pereça

"O dia em que eu nasci, morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!"

Luiz Vaz de Camões

terça-feira, 8 de junho de 2010

A Minha Aldeia

"Minha aldeia é todo o mundo.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence.

Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Ângulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que os homens da minha aldeia
são centenas de milhões.

Os homens da minha aldeia
divergem por natureza.
O mesmo sonho os separa,
a mesma fria certeza
os afasta e desampara,
rumorejante seara
onde se odeia em beleza.

Os homens da minha aldeia
formigam raivosamente
com os pés colados ao chão.
Nessa prisão permanente
cada qual é seu irmão.
Valência de fora e dentro
ligam tudo ao mesmo centro
numa inquebrável cadeia.
Longas raízes que imergem,
todos os homens convergem
no centro da minha aldeia."


António Gedeão