domingo, 13 de dezembro de 2009

A Distância actua sobre a Emoção

"Ah, esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração! Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. Em torno da mesa, outras senhoras costuravam.Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com o sussurro das fontes, o aroma das roseiras. No jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. Era uma dessas semanas também em que pela violência da natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a terra.
Ela lia as catástrofes, lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. «Na ilha de Java, um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas …». As agulhas atentas picavam os estrofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa; e ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, na Hungria, «um rio transbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados…». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que desgraça!». A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada pelo oiro da luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas…
Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males. E ela mesma então teve um oh de dolorida surpresa. No sul da França, «junto à fronteira, um trem descarrilado causara três mortes, onze ferimentos…». Uma curta emoção, já sentida, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses… Todos lamentámos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.
A leitora, tão cheia da graça, virou a página do jornal doloroso e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno… E, de repente, solta um grito e leva as mãos à cabeça:
– Santo Deus!...
Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:
– Foi a Luísa Carneiro, da Bela-Vista… Esta manhã! Desmanchou um pé!
Então a sala inteira se alvoroçou num tumulto de surpresa e desgosto.
As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltronas; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela-Vista, buscar notícias por que ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.
Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações… Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela-Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro dando à rua sombra e perfume."
Eça de Queirós – Cartas Familiares e Bilhetes de Paris (1907)

9 comentários:

josé luís disse...

admirável josé maria, tesouro imortal desta nossa língua!
mas o que ele (tão bem) descreve é bem verdade, a distância actua sobre a emoção - e a proximidade aumenta-a:
era para mim bem mais grave saber que uma lusa escrivaninha, salvo seja desmanchara uma perna, que ouvir dizer que em java várias cómodas tinham ficado soterradas num terramoto... :-)

Escrivaninha disse...

Agradeço emocionada a deferência de me individualizar de entre as várias peças de mobília com que convive. :-)

josé luís disse...

mas a emoção da proximidade é exactamente essa:
é que convivo com uma escrivaninha lusa, não convivo com cómodas javanesas - e por isso não a individualizo:
mobília desta só há uma, a escrivaninha e mais nenhuma!

(e como disse no outro blog, é um previlégio ler a sua escrita)
;-)

Escrivaninha disse...

Ai, o elogio inebriante...que não me faz nada bem. Mas sabe bem...e por isso mesmo que é inebriante, acrescentando partículas de felicidade à vida da escrivaninha lusa.

josé luís disse...

peço perdão mas creio estar enganada: se sabe bem, faz bem...

(isto é para contrabalançar aquele dito horroroso que reza: "o que é bom, ou faz mal ou é pecado")

;D

Escrivaninha disse...

Frase muito semelhante à que me ofereceram um dia, num avental comprado em Espanha: «Todo lo que me gusta ou es imoral ou engorda» (citado de cor e, por isso, sujeito a erros de ortografia, porque eu e o espanhol...)

josé luís disse...

pués...
[acabado de inventar e igualmente sujeito a erros de ortografia porque o espanhol e eu...]
pués...
eso me parece el epitafio ideal para el chocolate!

Escrivaninha disse...

por ser imoral, claro. lol

josé luís disse...

claro! LOLLOL

(bem, agora fiquei com desejos de chocolate... e já viu como a distância nem sempre actua sobre a emoção?)
;-)