segunda-feira, 2 de novembro de 2009

As Palavras

"São como cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?"


Poema gentilmente oferecido pelo José Luis, para integrar este arquivo.
(Só vi agora, desculpe. Raramente vou à caixa do correio...)
Obrigada!

2 comentários:

josé luís disse...

ainda bem que gostou.

a minha questão sobre o valor das palavras vem muito daqui... aliás, este poema do eugénio de andrade juntamente com outro, com o mesmo título, do antónio ramos rosa, definem tudo o que as palavras são para mim. deixo-lhe aqui esse poema também. depois disto, está tudo dito (é a sensação com que se fica).

mas havia ainda as ambivalências da palavra oral/palavra escrita, e essas minhas dúvidas mais estes dois poemas foram a base para tentar escrever (ao longo deste verão) o que viriam a ser as oito partes da palavra fabulosa...

sinto que ficou muito por dizer, mas não encontro já em mim as palavras em falta. paciência. [fico-me com as suas palavras, saboreadas como chocolates :)].



As palavras


Há palavras que são sombras de árvores
ou um bálsamo da terra,
um pressentimento de espuma,
um incêndio do tacto,
uma reverência ao desconhecido.
Amo as palavras que são às vezes sonâmbulos cavalos,
satélites de granito,
raparigas cegas no fundo das casas,
veias de uma estrela submarina.
Como não amá-las pela brisa
se são pétalas de um clamor silencioso
ou anjos sossegados dormindo sobre a terra
ou lúcidas e ébrias, majestosas e puras,
magníficas como um dorso recamado de estrelas,
intacta revelação de invioladas luas?
Desconfio das palavras, mas às vezes são leves, musicais,
aves que planam sobre uma cidade branca,
ilhas mágicas, selados vasos, cordeiros recém-nascidos,
caravanas vermelhas, armadilhas de cristal,
amoroso tremor de matéria terrestre.
Como um boi nocturno das águas, eu procuro
essas guitarras plantadas nas plantas
que através de eclipses e da distância
erguem uma árvore de música ou uma pirâmide
ou as lianas vivas que me defendem dos abismos.
Como estátuas de ar as palavras levantam-se
na harmonia delirante do nómada do deserto.
Quer sejam suspiros entre arbustos ou sonâmbulas melodias
estão sempre à altura dos seus próprios desejos.
Quer o cérebro sangre ou a terra estremeça
o seu cerimonial é inesgotável, as suas relíquias vivas.
São abelhas ou astros que buscam alimento
nos ninhos de amêndoa ou nos espelhos da lua?
Amo as palavras, acredito nos seus cristais secretos,
nos seus cavalos subterrâneos, nos seus densos diamantes.
Escrevo-as com minucioso ardor entre nascentes e sombras,
sei que são anjos de argila, antiquíssimos arqueiros
que disparam as flechas de erva sobre estrelas vivas.


António Ramos Rosa, in «O não e o sim», 1990

Escrivaninha disse...

Gostei muito do poema, que não conhecia. Tem uma força incrível!
E também gostei do doce comentário.
Boa semana!